Capítulo II-Contexto do Adolescente - Marisa Lopes Rocha

Marisa afirma ser "imprescindível falar em condição juvenil como ponto de partida, a fim de facultar a compreensão da heterogeneidade de situações e experiências que marcam a diversidade de modos de inserção social." 

Assim, questões como o que é ser criança e adolescente nessa comunidade, o que se constitui como questão para eles, o que vem servindo de elo entre eles, criando um código comum que serve de suporte para o enfrentamento dos conflitos atravessados nas suas vidas cotidianas, são importantes para o conhecimento da população com a qual trabalhamos, facultando a adequação do planejamento (Rocha, 2001). 

A contextualização da adolescência é fundamental,considerando que o processo de formação nos dias atuais se vê diante de fatores de diferentes ordens: a instantaneidade temporal provocada pela velocidade tecnológica, que acarreta uma certa superficialidade na aquisição de conhecimentos, a cultura do consumo, geradora de múltiplas necessidades rapidamente descartáveis, o quadro recessivo, que amplia a exclusão social, associado à pulverização das relações coletivas, levando à individualização e ao desinteresse na esfera pública e política. 

A partir desse panorama, ocorre o desmapeamento, ou seja, a perda de referenciais que se configuram, enquanto efeito, significando a fragilização frente à vulnerabilidade das referências e dos laços sócio-culturais (Castro, 1998). 

E novas questões se colocam para as diferentes instituições que trabalham com adolescentes como possibilidade de encontrar alternativas: o que favoreceria a experiência social dos adolescentes? Em torno de que interesses e práticas se viabilizaria a construção de grupos solidários com certa estabilização, desdobramento e avaliação de ações, possibilitando formas comuns de compreensão da realidade? A saída da infância ocorre na interação permanente entre agências socializadoras encarregadas de preparar o jovem para a vida adulta. 

A diversificação de laços e referências em contínua relação com o mundo familiar trará aos adolescentes a possibilidade de construir sua autonomia. Nesse sentido, o processo de singularização do sujeito se inscreve na relativização das referências familiares, o que implica que a instituição familiar não se constitua apenas como nós, mas também na presença do outro, condição indispensável da existência do nós. À família enquanto rede de proteção, de amparo, núcleo estruturante, cabe abrir espaço para o outro, acolhendo as novas experiências e a aceitação do conflito que se instala entre os vínculos de pertinência e relações de apego estabelecidas no espaço doméstico e as investidas para a construção da autonomia. 

Será criando oposições que, gradativamente, o adolescente se irá diferenciando, fazendo do conflito uma ferramenta indispensável para tornar-se sujeito (Ribeiro & Ribeiro, 1995).   Se é durante a adolescência que se intensificam as produções de projetos de vida e que se desenvolvem as estratégias e ações para que sonhos se transformem em realidade, como favorecer a expressão de ideais, de frustrações, considerando os limites e as possibilidades do contexto em que vive o jovem? O que se constitui para os adolescentes desafios e problemas na sociedade atual? Que diferenças trazem a partir das suas condições concretas de existência e das diversas experiências vividas no seu cotidiano em relação com a família, com os amigos e com a escola?    

As transformações aceleradas da vida contemporânea e a crescente complexidade social trazem como conseqüência as dificuldades de compreender a realidade na sua transformação e a diversidade de formas de existência que se atualizam nas múltiplas redes de valores, afetos, tradições e perspectivas. 

A fragilização dos espaços públicos pela violência, insegurança e pelo individualismo exacerbado, vem gerando a multiplicação das práticas de autodefesa, de desagregação social, reduzindo a oportunidade de intensificação da convivência, de trocas e de experiências. Do mesmo modo, o aumento das dificuldades econômicas e suas conseqüências sobre a inserção social e profissional de grande parcela da população atingem de forma dramática os jovens no meio urbano (Valla & Stotz, 1996).  

É nesse contexto que os serviços de atendimento à saúde e os especialistas passam a se constituir  uma escuta privilegiada dos jovens e famílias isolados de uma rede de solidariedade. Em meio à multiplicação das demandas por cuidados, questões essenciais precisam ser problematizadas nos serviços. As famílias, principalmente de classes populares, pela precarização de recursos e informações, pelo excesso de trabalho e escassez de tempo, vivem relações de abandono, de insegurança e de dúvidas no trato com os filhos. Para buscar modificações na situação dos adolescentes num mundo tão conturbado como o atual, é de fundamental importância pensar o adolescente na família e não isoladamente, o que aponta para uma atuação com o jovem e com o núcleo ao qual pertence, estabelecendo o que se constitui como vulnerabilidade e como possibilidades. 

Pela sua função de núcleo socializador da prole, o exercício da autoridade dos pais comporta tanto relações assimétricas, quanto complementares, e nem sempre tem se mostrado uma tarefa fácil estabelecer os limites do que é ou não negociável nas relações domésticas. Nesse sentido, atuar junto à família é favorecer o conhecimento sobre os recursos de que dispõe para ajudar os adolescentes e a si própria (Ribeiro & Ribeiro, 1993).  

 A sociedade contemporânea apresenta questões que não podem ser desprezadas para a compreensão do que se passa na vida privada, e aqui podemos ressaltar as relações entre gênero, entre gerações, as influências dos meios de comunicação, dos discursos e práticas médicas, pedagógicas, jurídicas. 

Assim, a família  constitui um espaço de complexidade e não pode ser pensada de forma isolada e nem descontextualizada, na medida em que outras esferas intervêm na sua intimidade, retirando muitas de suas funções e impondo modelos de funcionamento normatizados e normalizadores. É importante perceber que tendemos a reconhecer como núcleo doméstico aquilo que nos é familiar, fruto de nossas experiências, o que inviabiliza o reconhecimento de referenciais diversos advindos de outros modos de existência. Naturalizamos modelos de relações e passamos a classificar o que se apresenta diante de nós como normal ou patológico, não levando em conta que a família se define pelas relações de sentido que consegue estabelecer entre seus membros (Szymanski, 1992). A questão é: o quanto potencializam ações que compatibilizam o reconhecimento de cada um e a existência do próprio núcleo? 

O conjunto de profissionais que atua com famílias precisa ter em mente que o discurso que fazemos sobre essa instituição, o modo como a encaramos, estabelece o sentido de nossa ação. Esse é o caminho para que possamos potencializá-la a enfrentar suas vulnerabilidades, sem reforçar os dispositivos de poder que atuam sobre elas, culpando-as. 

A questão está em como ouvimos os anseios e necessidades dos adolescentes em suas relações com os pais, levando em conta o mundo em que se situam, seus compromissos e responsabilidades. 

O desenvolvimento de práticas com famílias envolve não só as questões sobre a ampliação de suas condições concretas de existência, como a representação que temos delas e o modo como elas próprias se vêem. Elas constroem uma ideia de si, no enfrentamento de suas experiências, mas também a partir de como delas se falam. 

expressiva desigualdade social produz marcas profundas na auto-imagem de grande parte da população que se apresenta nos serviços públicos, isto porque a inferioridade naturalizada, a imagem de núcleo doméstico incompetente, incompleto, faz com que acreditem menos nas possibilidades de contribuir para criar saídas, ficando mais fragilizadas frente aos discursos instituídos sobre elas.

 Direitos e afetos compõem uma noção de família, que possibilita pensar em um projeto mais democrático de sociedade, implicando serviços que têm como desafio a construção de uma cidadania ativa, em que reivindicações de si e dos outros estão em pauta, produzindo alternativas compartilhadas entre profissionais e comunidade assistida. Assim, interessa-nos indagar em relação às famílias: quais suas questões e que iniciativas vêm adotando para o enfrentamento das problemáticas que surgem no dia-a-dia? Que experiências vêm fortalecendo os seus vínculos internos e com a comunidade, auxiliando na formação de redes solidárias? 

educação escolar, para grande parte da população brasileira, produz um conjunto de relações marcadas pela tensão, descontinuidade e desvalorização das crianças e dos adolescentes que nela ingressam. O que ocorre é um desencontro entre as esperanças construídas pelas famílias em torno do valor da escola e as aspirações juvenis – ascensão social, melhoria das condições de vida. Para o jovem, o desencontro das expectativas iniciais gestadas na família e a experiência cotidiana vivida nas escolas, que nega essas aspirações, pode gerar desinteresse, indisciplina e violência, na medida em que a trajetória na escolarização gera insucesso e exclusão. Dependendo do seu modo de funcionamento, a escola pode ou não vir a contribuir para a estruturação efetiva de referências e a questão está na sua capacidade de propiciar arranjos que assegurem um conjunto de relações sociais significativas para os adolescentes e suas famílias (Patto, 1993). 

Em sua forma de funcionamento tradicional, a escola não vem agenciando uma ação socializadora sobre grande parte de seus alunos, crianças ou adolescentes, que mantêm, antes, uma relação hierárquica de distanciamento construída na condição de aluno. Porém, é importante evidenciar que tal perspectiva não incide somente sobre o aluno, pois o modo de gestão e a organização do processo de trabalho escolar estão atravessados pela exclusão do próprio professor, que não interfere nas regras de seu próprio ofício. Se está na relação professor-aluno grande parte das expectativas de inserção do aluno e de mudanças no processo de ensino-aprendizagem, é de fundamental importância que o professor possa conquistar um outro lugar no interior da escola (Machado & Souza, 1997). 

A questão não se reduz, então, a sugerir um novo/velho aparato técnico para o cotidiano educacional. O desafio é a gestão coletiva do sentido da vida escolar, ou seja, da política que orientará aquela comunidade e o processo de ensino-aprendizagem a partir do qual serão estabelecidos os objetivos do trabalho, o modo de funcionamento dos dispositivos criados e a dinâmica de relação e intervenção dos diferentes segmentos.

mudança no sistema educacional tem que partir da ressignificação de conceitos como cooperação, autonomia e eficiência, que hoje estão baseados em concepções imediatistas vinculadas à lógica empresarial. Tais conceitos são utilizados para acelerar processos de mudança, mas trazem como correlato a segregação, o desprestígio e a precarização da tarefa docente. O ato de cooperar, que deveria estar ligado a uma prática coletiva construída através da análise da realidade, de seus conflitos e da elaboração de alternativas, está vinculado à execução de tarefas.

autonomia dos indivíduos é uma construção que tem início no processo de autonomização dos grupos que, pelo exercício ético-político de suas práticas, criam sentidos comuns para seu fazer. A eficiência esperada a partir da burocracia funcional não está na qualidade do processo, mas vinculada à competitividade  e  à racionalização que, na prática, se traduzem pelo menor tempo e menor custo em obter o máximo de resultados, sendo que estes se referem às estatísticas de aprovação. Desse modo, a mudança da realidade escolar está implicada com a possibilidade de um trabalho institucional na escola, cuja meta está na organização de processos de análise e discussão com os diferentes segmentos, sobre as condições de trabalho, seus efeitos para a saúde/adoecimento, constituição de projetos, contextualização das práticas, enfim, no estabelecimento de um processo de gestão coletiva, que articule direitos e afetos da comunidade envolvida (Rocha, 2001).

Para falarmos de saúde de educadores, de alunos e de familiares, é fundamental mapear a noção de saúde de forma mais aprofundada. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), a saúde não se caracteriza unicamente pela ausência de doença, mas implica um estado de bem-estar físico, mental e social integral. A partir dessa perspectiva, Dejours, Dessors e Desriaux (1993) questionam o que seria um estado de completo bem-estar, tendo em vista ser humanamente impossível atingir tal ponto de plenitude. Mais fecundo seria pensar a saúde como um objetivo a ser atingido. Dejours e colaboradores ressaltam a variância a que estão submetidos os organismos humanos e, portanto, que não há nada de fixo ou de constante em um organismo vivendo normalmente, mas um constante movimento.

A saúde não pode ser descrita como um estado ideal, uniforme, mas como a busca permanente de mobilização das forças ativas, das energias necessárias para viver. Desse modo, falar em saúde é falar de uma sucessão de compromissos que assumimos com a realidade, e que se alteram, que se reconquistam, se definem a cada momento. Saúde é um campo de negociação cotidiana para tornar a vida viável. Se a promoção de saúde dos educadores está diretamente ligada à organização do trabalho, pois dela dependem a viabilização das alternativas de atuação dos trabalhadores e a reapropriação do saber e do poder decisório do trabalho, isso não é diferente para os trabalhadores dos serviços de saúde.

Reconstruindo modos de funcionamento na saúde: A construção de relações entre os membros de um serviço tem início no estabelecimento dos problemas comuns, na aglutinação de profissionais e de ideias e na análise coletiva do cotidiano.

É com a perspectiva de conhecer e articular novas questões que se consolidam vínculos que possibilitam buscar outras vias de ação. Assim, a problematização coletiva das questões deve nortear as práticas da equipe multidisciplinar (incluindo também os profissionais de nível médio e elementar) frente às diferentes demandas individualizadas ou institucionais, norteando novas relações com a família, com a escola e com outros grupos institucionais.

Não se trata somente de conhecimentos e habilidades a dominar, ou seja, de competências específicas a desenvolver, mas, antes de tudo, de viabilizar um trabalho de equipe que possibilite uma metodologia de ação que permita ao grupo estabelecer metas, buscar novas informações, análises e soluções para as problemáticas permanentemente construídas (Núcleo de Estudos da Saúde do Adolescente, 1999, 2000).

Alguns fatores ajudam na organização dessa metodologia:

 - compreender a dimensão ampliada do conceito de saúde e o da origem multifatorial dos agravos à saúde;   
- identificar as principais problemáticas de saúde na região, buscando informações sobre seus determinantes e agentes possíveis de saúde. Todos os trabalhos realizados com adolescentes precisam ter uma extensão do projeto aos familiares. A organização de grupos de discussão com famílias atingidas pelas problemáticas em análise favorece as trocas de experiência e a organização de redes solidárias que, em muitos casos, passam a recorrer aos especialistas apenas como suporte para as ações e não mais como intermediadores permanentes de relações;   
 -  considerar a diversidade sociocultural dos adolescentes e de suas famílias no desenvolvimento das ações. Isso é conseguido muito mais facilmente pela organização de grupos de trabalho e discussão, abordando as diferentes questões atravessadas nas vidas dos jovens e focalizando os modos singulares de viver e lidar com as experiências; 
 -   criar mecanismos de capacitação continuada da equipe, visando ao aperfeiçoamento das práticas, favorecendo as trocas de experiências e conhecimentos entre serviços e regiões;
  - desenvolver propostas para a formação de multiplicadores, ou seja, informar-se para informar, aprender a prevenir para ensinar a prevenção, abrindo espaço para a formação de novas redes. Essa é uma necessidade devido ao acúmulo de trabalho delegado aos serviços de saúde. Quando uma escola, por exemplo, faz solicitações pontuais, como atendimentos ou palestras, seria importante, a partir dessas demandas, constituir, com os educadores da região, uma formação operativa (oficinas, estágios, trabalhos coletivos teórico-práticos) que permita a multiplicação de agentes na consolidação de mecanismos propiciadores de saúde. Quando os profissionais do serviço não têm os recursos humanos e materiais para o desenvolvimento de ações multiplicadoras, é fundamental o estabelecimento de parcerias com secretarias municipais e estaduais, com organizações não-governamentais e grupos organizados como estratégias pertinentes para o desenvolvimento da ação;   
- desenvolvimento de uma política de atendimento com critérios visíveis, estabelecidos coletivamente por todos os que fazem parte do processo;     
- finalmente, o estabelecimento de processos avaliativos periódicos é de importância vital para a qualidade de vida nos próprios serviços. Questões como: O que vem funcionando como potencializador do trabalho articulado? O que faz com que muitos projetos fracassem? Quais as ressonâncias importantes dos diferentes projetos de ação no serviço e de intervenção em outras instituições?

Nas experiências em curso em diversos serviços, tem sido por intermédio da construção de redes de multiplicadores– adolescentes, familiares, escolas e profissionais de diferentes qualificações e funções, o que mais vem constituindo uma solução para o acúmulo de trabalho e os agendamentos infindáveis de cuidados. O que pudemos verificar é que a mola propulsora dessas iniciativas está na fala, na socialização de informações, na circulação das ações e das emoções. A possibilidade do exercício permanente de práticas solidárias, na construção de parcerias, na saída do isolamento e da fragmentação intra e extra muros, possibilita a ampliação de recursos materiais e humanos para o enfrentamento das adversidades presentes na vida contemporânea. Para o trabalho com os adolescentes, nada mais importante do que uma ação cuja base real é uma rede de ações integradas.

A constituição de várias iniciativas cidadãs que pressupõem uma participação ativa politicamente, ou seja, que atuam na definição do sentido das práticas e não somente na execução de atividades, criando redes interpessoais e interorganizacionais, é o palco fecundo para a gênese, difusão e fortalecimento de novos valores.

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