Preciosa: uma
história de esperança?!
Uma história de esperança e de
muita dor, talvez... Inicio esta breve reflexão pontuando o quanto foi doloroso
rever Preciosa. Revê-la me possibilitou olhar mais uma vez para a minha
história e vida profissional, pois aqui já pontuo que abdicarei da suposta
neutralidade científica ao escrever. Escreverei na primeira pessoa, rompendo
assim com algumas psicologias que nos pedem apenas para se afastar do fenômeno
para melhor compreendê-lo.
Eu, apesar disso, ousarei me
aproximar, pois a história de Preciosa se entrelaça com a nossa, negras e
negros, sujeitos da/a diáspora. Forçosamente fomos obrigados a navegar para
outros mares e, neste percurso, lágrimas foram derramadas e continuam a ser.
Preciosa representa parcela da população feminina negra e gorda. Preciosa é
ironicamente o que a sociedade não consegue e não deseja olhar com afeto e
acolhimento. Preciosa representa nossas meninas cotidianamente violentadas no
espaço em que se acredita ser “lar doce lar”.
Não, não havia lar doce lar para
ela e nem uma comunidade acolhedora que a escutasse e valorizasse. Preciosa
desejava ser branca em uma sociedade estruturalmente racista. Ela olhava para o
espelho e não se reconhecia. Não havia espaço para meninas como Preciosa na
mídia e no coração de muitas pessoas. Estuprada e agredida pelo pai e pela mãe
(sim, pela mãe também!!!)... Confesso que só desta vez, consegui perceber que
ela também era explorada sexualmente pela mãe. Nosso olhar cultural ainda só
pensa na figura masculina como potencialmente abusadora. Entretanto, o filme
também traz a questão do abuso sexual praticado por mulheres. Quando me dei
conta desta cena, lembrei da necessidade de refinar o meu olhar enquanto
psicoterapeuta, não apenas olhar, mas a escuta. Uma escuta que possibilite que
a outra se revele. Uma escuta que “acolha” os efeitos do racismo, da
gordofobia, da violência intrafamiliar e nos espaços educativos. Do apagamento
da história e realidades de vida de nossas alunas no cenário escolar. Histórias
essas que não são reconhecidas e nem imaginadas, devido ao alto grau de
sofrimento.
Em se tratando da escola, cabe
também reconhecer que foi em uma “escola alternativa” - que deveria ser escola
regular – que Preciosa pôde ser acolhida e escutada. E por quem? Por uma mulher
negra e lésbica socialmente engajada e afetuosamente comprometida. Alguém que
também não tinha uma boa relação com a mãe devido a sua condição/orientação
sexual. Mais uma excluída que, apesar disso, era luz em seu fazer profissional.
E como não olhar para a minha história e de parcela da comunidade negra
LGBTQIA+? Somos também essa luz, mesmo quando jogados nas trevas da dor,
solidão e morte.... As meninas que estavam na escola especializada também eram
atravessadas por violentos processos de exclusão... Foram elas também as responsáveis
pela mudança operada em Preciosa, mudança que afetou a todas.
Respiro fundo e continuo a
escrever, mas já mais próximo do fim que aqui não é final, mas abertura para
que você leitora ou leitor também produza subjetivamente a partir dessa
história e da escrita (e da sua escrita)... Quem são as preciosas? Há esperança
em seu fazer? Neste setembro amarelo, você tem sido luz? Enfim, eis aqui minhas
breves, afetuosas e dolorosas reflexões!
Adailton Conceição Precioso de
Souza, homem negro e gay, cientista social e psicólogo CRP 03 6933,
especialista em psicologia clínica e mestre em estudos interdisciplinares sobre
a Universidade pela UFBA.
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