Recorte do texto: Descobrindo o encobrimento da descoberta freudiana: a psicanálise e a "Ego Psychology" Geselda Baratto

As primeiras elaborações concernentes ao inconsciente na obra freudiana datam do período relativo aos Estudos sobre a histeria. O que podemos denominar um segundo período tem lugar no momento em que o "método hipnótico", enquanto método de abordagem do inconsciente, é abandonado em favor do método da "livre associação". 

Este segundo período é entrevisto pelo próprio Freud como aquele no qual a psicanálise propriamente dita tem lugar (Freud, 1914, p. 17). De fato, no seu interior Freud procede à formalização conceitual do inconsciente, conferindo-lhe os contornos teóricos específicos que permitem demarcar a especificidade de elaboração que o inconsciente tem na psicanálise. Este segundo período coincide, portanto, com a introdução e a elaboração da "primeira tópica freudiana"

Nesta, Freud concebe o aparelho psíquico sendo composto por três sistemas: o inconsciente, o pré-consciente e a consciência. Na década de 20 tem lugar na obra freudiana o terceiro momento de síntese elaborativa sobre o inconsciente. No desenrolar deste período, temos a palavra decisiva de Freud no tocante a sua concepção do aparelho psíquico, fato este que constitui um momento decisivo e fundamental para a história do movimento psicanalítico, e no qual têm lugar às elaborações relativas à "segunda tópica freudiana". 

Nesta, Freud introduz as novas instâncias tópicas do id, ego e superego, estabelecendo ainda as relações que estas entretêm com o inconsciente, tal como formulado na primeira tópica. 

Entretanto, a década de 20 é marcada por dois grandes eventos:

O primeiro, a que já nos referimos, diz respeito ao movimento revolucionário interno à própria psicanálise, que deu lugar ao avanço freudiano que conduziu a elaboração da segunda tópica. 

O segundo à particular leitura e interpretação que ela sofreu nos Estados Unidos da América, o que deu lugar, por sua vez, a uma particular rota de desvio no que tange tanto aos princípios teóricos quanto aos princípios técnicos da psicanálise. E justamente a partir de uma certa interpretação conferida ao que Freud elabora na segunda tópica que surge uma neo-escola de psicanálise autodenominada: Psicologia Psicanalítica do Ego. 

Nosso propósito é, por um lado, proceder ao desenvolvimento das teses freudianas fundamentais relativas ao inconsciente. Isto requer, a nosso ver, o atravessamento tanto da primeira quanto da segunda tópica. Por outro lado, argumentar que justamente em torno do entendimento que a Psicologia Psicanalítica do Ego efetuou a respeito da segunda tópica estabeleceu-se a rota de desvio por ela traçada e percorrida. Desvio este responsável pelo distanciamento que ela guarda com relação à psicanálise. No intuito de demarcar pontos específicos em torno dos quais esse desvio se operou, procederemos ao desenvolvimento de alguns conceitos que se revelam fundamentais para a referida escola, pautando-os por aqueles que se revelam fundamentais no pensamento de Freud. Traçam-se, assim os delineamentos teóricos que distinguem e separam uma abordagem psicanalítica sobre o sujeito de uma abordagem psicológica sobre o indivíduo. 

Efetivamente, a Psicologia Psicanalítica do Ego, ao conferir um valor supremo aos processos racionais conscientes e à faculdade de síntese sua, oferece-nos uma concepção psicológica sobre o indivíduo. 

DESCOBRINDO O INCONSCIENTE 

Neste tópico versaremos sobre o percurso de evolução histórica do conceito de inconsciente, o que nos permitirá traçar o percurso teórico que vai da introdução da primeira à segunda tópica, estabelecendo as relações fundamentais que entre ambas se opera. 

O conceito de inconsciente constitui o ponto em torno do qual se ordena e sustenta o edifício teórico e técnico da psicanálise. Isto justifica que nos detenhamos sobre as teses freudianas centrais acerca dele. Sobre a descoberta do inconsciente, pode-se afirmar que ele constitui um divisor de águas, no que à concepção de sujeito concerne. O conceito de inconsciente faz função de borda, demarcando a fronteira entre uma teoria do sujeito e uma teoria do indivíduo. Isto é, a fronteira entre, por um lado, a psicanálise e, por outro, a filosofia racionalista e as correntes psicológicas que dela se derivam. 

É secular, no pensamento de algumas tradições filosóficas, a noção relativa à existência de processos mentais que se desenrolariam à margem da consciência. Não poucas correntes filosóficas postulam que, sob determinadas circunstâncias contingenciais, a própria consciência poderia submeter-se a um processo de divisão. Esta noção deu lastro à ideia segundo a qual importantes parcelas da atividade mental poderiam furtar-se ao controle das atividades conscientes racionais, vindo a formar, assim, a face obscura das paixões da alma, de todos os modos homologada aos processos irracionais da mente

A noção de uma "consciência inconsciente", isto é, a ideia segundo a qual a consciência poderia ser dividida em duas partes simetricamente opostas, passíveis, em todo caso, de integralização através da (re)união das partes separadas, porta em seu bojo a argumentação, tão clássica quanto contemporânea, de que o próprio e característico da atividade mental normal é funcionar de forma integrada. 

A consciência, compreendida como eixo central em torno do qual giram e ordenam-se todos os processos mentais, teria como função primordial levar a cabo os ditos processos de síntese e integralização da vida mental. Tornou-se assim moeda corrente, aceita por muitos teóricos, a noção segundo a qual a característica da atividade consciente é apreender-se a si mesma através do movimento "reflexivo". O movimento reflexivo, em que a consciência refletiria a si própria, refletiria, em ato, o próprio eu. O sujeito racional é aquele capaz não somente de pensar, mas, sobretudo, é o que se mostra apto a apreender-se a si próprio como um ser pensante. Este foi o passo inaugural dado por Descartes na célebre formulação "Penso, logo sou". O passo cartesiano conduziu bem depressa a homologação do sujeito ao ato de pensar e deste à consciência. O próprio da atividade de pensamento, de acordo com este raciocínio, é ser consciente, logo, racional. O princípio segundo o qual o sujeito é uma "substância pensante" introduz, de um só golpe, a categoria de sujeito psicológico, aquele que tem na consciência, compreendida como sede de conhecimento imediato, sua morada e na racionalidade, intencionalidade, autonomia, seus atributos. A teoria do inconsciente, tal como elaborada por Freud, nada deve às teorias filosóficas que se calcam na noção de "uma consciência inconsciente" (Freud, 1912). 

Freud, ao subverter, com a descoberta do inconsciente, a concepção clássica de sujeito do conhecimento, tal como inaugurada por Descartes, põe em cena uma dupla revolução. Primeiramente, ao afirmar que o inconsciente pensa, Freud desaloja a consciência como sede privilegiada do ato de pensar, alterando assim o privilégio concedido aos pensamentos racionais. Em segundo lugar, promove uma ruptura tópica ao asseverar que o ser e o pensar não se situam no mesmo lugar. A não-convergência tópica entre o ser e o pensar faz com que o sujeito freudiano seja marcado por uma irremediável cisão. O sujeito é, para Freud, o rachado, o dividido: o que está posto à margem de um centro ordenador central, como tal caracterizado por um descentramento radical. Para Freud, os processos de atividades mentais não se ordenam em torno da função da consciência, logo, esta não pode ser homologada ao psíquico. É verdade que a consciência faz parte do psíquico, contudo, não o totaliza (Freud, 1912, p. 327). 

Freud introduz a concepção de uma ordem, de um sistema, perfeitamente capaz de instituir e elaborar pensamentos que subsistem à margem da consciência. Este sistema não é outro senão o próprio inconsciente. 

Freud infringe ao homem o terceiro grande golpe capaz de abalar o seu narcisismo, colocando em pauta a existência de uma ordem psíquica de estatuto inconsciente. Freud postula a presença, em cada sujeito, de processos de pensamentos que, ao se produzirem à margem da consciência, são regidos por leis lógicas que diferem daquelas que regem os processos racionais conscientes de pensamento. Conseqüência imediata e direta desta proposição segundo a qual o inconsciente pensa é o fato de que o estado de cisão psíquica ao qual o sujeito está atrelado não constitui uma contingência desafortunada. 

O conceito freudiano de sujeito remete à impossibilidade, desta vez estrutural, de qualquer forma de síntese harmônica, supostamente gerada e mantida pela consciência. O sujeito freudiano é habitado por pensamentos e desejos que nele operam à revelia de qualquer controle racional. Entretanto, sabemos que essas elaborações relativas ao inconsciente têm, na obra freudiana, uma longa e laboriosa história de construção. Seu percurso histórico tem início no período relativo aos Estudos sobre a histeria, atravessa todas as elaborações conceituais constituintes da primeira tópica e culmina com a introdução da segunda. 

Abordaremos algumas ideias centrais desenvolvidas por Freud relativas a cada um destes três períodos. Este procedimento permitirá, na seqüência, estabelecer os pontos precisos em torno dos quais a Psicologia Psicanalítica do Ego operou uma rota de desvio sem precedentes em relação aos postulados freudianos.

 No período relativo aos Estudos sobre a histeria, a técnica posta em curso por Freud era a da "sugestão hipnótica". O objetivo desta era conduzir à "catarse" através da "ab-reação". A "sugestão hipnótica" objetiva tornar consciente os eventos traumáticos que se encontravam subjacentes aos sintomas. Os acontecimentos traumáticos não ab-reagidos, deveriam receber expressão verbal, meio pelo qual se produzir-se-ia a catarse. A "ab-reação", sabemos hoje, consistia essencialmente em nomear, simbolizar, pelo recurso à palavra, um real vivido não integrado ao sistema simbólico do sujeito. 

Destacaremos alguns pontos teóricos, sustentáculos do método hipnótico, no intuito de apontarmos o quanto constituem os germens da futura teoria do inconsciente e do método da "livre associação". Nesse período, Freud sustentava que, entre os sintomas e o fator traumático que os presidia, havia uma relação associativa que obedecia a uma ordem de "conexão causal simbólica" e que esta encontrava-se perdida para o sujeito. Havia, por parte do sujeito, uma "perda de memória" destes laços simbólicos, de forma que ele era incapaz de relacionar a lembrança do trauma com seus sintomas. Isto conduziu Freud a concluir que "os histéricos sofrem de reminiscências" (Freud, 1893-5a, p. 48). 

Consoante ao que se elaborava teoricamente neste período, tornar consciente o fator traumático consistia precisamente em restabelecer estas conexões simbólicas perdidas, por meio do recurso à palavra. A despeito das múltiplas versões psicologizantes que circulam, tornar consciente o inconsciente sempre foi, para Freud, um trabalho levado a efeito pela "função da fala" (Freud, 1940a [1938], p. 187). Contudo, Freud constata, nesse mesmo período, que para conduzir o paciente à verbalização das lembranças traumáticas, fazia-se necessário um certo esforço terapêutico. Este fato denotava que tinha se lutar contra uma força que se opunha à rememoração. Freud denominou-a resistência. 

A resistência era a força que se opunha aos esforços do tratamento, assim como também era ela que, desde o início, se havia oposto à penetração das idéias traumáticas na consciência, ou seja, que se encontrava na base do recalque

Surge assim a teoria da defesa implicada no processo de recalque. Nesta, Freud desenvolve a concepção de um conflito psíquico posto entre ideias inconscientes e o ego. Um determinado grupo de ideias "antitéticas" ou "irreconciliáveis" com aquelas presentes no ego era, pela defesa envolvida no processo de recalque, afastado deste. A incompatibilidade do ego com tais ideias, e a conseqüente expulsão das mesmas de seu território, conduzia ao estado de cisão psíquica. O material expulso passava, desde então, a organizar-se numa "seqüência de pensamentos" (Freud, 1893-5, p. 345) regida por uma lógica associativa diversa daquela operante no ego e dele independente. Essas elaborações relativas à teoria do recalque conduzem Freud ao centro das argumentações presentes no interior da primeira tópica. Nesta, o recalque se estabelece como o mecanismo constitutivo dos processos inconscientes. 

Na primeira tópica o inconsciente se define inteiramente pelo recalque. Ele é o operador necessário e suficiente pelo fato de que existam representações inconscientes; como tal é o responsável pela divisão psíquica em três sistemas: inconsciente, pré-consciente e consciência. "Obtemos assim o nosso conceito de inconsciente a partir da teoria da repressão. O reprimido é, para nós, o protótipo do inconsciente" (Freud, 1923, p. 27). 

Ao elaborar a primeira tópica, Freud procede à rigorosa distinção entre duas formas de conteúdos representacionais latentes: os latentes de momento, capazes de se tornar conscientes, e aquele outro grupo de representações latentes, em que o esforço de "atenção deliberada" em torná-los conscientes revela-se ineficaz e devem, portanto, permanecer latentes e inacessíveis de forma direta. Freud demarca assim a diferença entre o uso descritivo e o uso dinâmico do termo inconsciente. Razão pela qual ele é levado a designar o primeiro grupo de préconsciente, reservando ao segundo grupo, exclusivamente, o termo inconsciente. 

É no recalque que se encontra o elemento operacional que exerce função diferenciadora entre, por um lado, os processos conscientes e pré-conscientes e, por outro, os inconscientes. 

A propósito da temática do recalque, no texto metapsicológico de 1915 "O recalcamento", Freud introduz uma distinção essencial entre o recalque primário e o secundário. O recalque primário introduz no registro da representação a pulsão, ou seja, a pulsão enquanto representada, pois, "mesmo no inconsciente, um instinto não pode ser representado de outra forma a não ser por uma idéia" (Freud, 1915a, p. 203). É, portanto, pelo recalcamento primário que a pulsão "encontra uma primeira expressão psíquica" (Freud, 1940 [1938], p. 170). Temos de considerar, portanto, que não é a pulsão, ela mesma, que ingressa no psíquico, mas sim seus representantes. O psíquico é o lugar que, por acolher os representantes da pulsão, inaugura os processos inconscientes, instaurando, por seu turno, a divisão do aparelho mental em três sistemas.

Lacan (1964, p. 206) assinala que para Freud: "o recalcamento cai sobre algo que é da ordem da representação, que ele denomina Vorstellungsrepräsen tanz ".  O fato de que é pela representação que a pulsão ingressa na ordem psíquica aponta toda a distância que separa o inconsciente freudiano de qualquer concepção que o assimile ao inato, ao orgânico, ao pólo instintivo da esfera mental. Esta foi em todo caso, como veremos, a interpretação conferida pela Psicologia Psicanalítica do Ego ao inconsciente freudiano. 

Lacan, em seu "retorno" magistral à obra freudiana, interpretará o inconsciente freudiano à luz de sua teoria do significante. Para ele, o recalcamento primário corresponde ao momento de inscrição de um primeiro significante - o "significante mestre" -, assim denominado pelo fato de que ele tem função de comandar a cadeia significante, na justa e estrita medida em que a engendra. 

Lacan liga a emergência do inconsciente à inscrição no registro psíquico deste primeiro significante. Ele é o efeito da incidência da linguagem sobre o futuro sujeito, aquele que advém por ser banhado na estrutura simbólica da linguagem. O sujeito lacaniano é o que deriva da teoria do significante. 

Lacan faz a emergência do sujeito do inconsciente depender, de um lado, de uma alienação do vivente à linguagem e, de outro, do resultado de uma perda, que ele denomina objeto a dupla condição de emergência do sujeito. Sob o peso do significante, o sujeito surge como dividido, mas ele é ainda o efeito de uma perda, ela própria causada pelo significante. Entretanto, o inconsciente, definido na primeira tópica como puro sistema dinâmico relacionai, requer necessariamente a articulação entre o recalcamento primário e o recalque propriamente dito. 

A filiação simbólica do sujeito depende do entrelaçamento que entre ambos se opera. O que se depreende, correlacionando a primeira tópica com a segunda, é que por meio do recalcamento primário tem origem a instância tópica do id (es); quanto ao recalque propriamente dito, ele incide sobre os derivados psíquicos da pulsão primitivamente recalcada, dando assim origem às instâncias tópicas narcísicas do ego e do superego. 

O inconsciente da primeira tópica é apresentado por Freud como inteiramente constituído pelo processo de recalcamento, ou seja, inteiramente constituído por representações tramadas em cadeia. O deslocamento e a condensação, leis que regem os processos inconscientes, determinam o modo de associação destas representações entre si. Essa noção de representações recalcadas, formando uma verdadeira cadeia de acordo com leis que ordenam a forma de laço que elas entretêm-se entre si, isto é, que determinam que seu modo de arranjo e composição não é obra do acaso, é a noção mesma de dinâmica inconsciente. 

O inconsciente é puro jogo combinatório, puro processo de sintaxe entre seus elementos representacionais. Sublinhamos, portanto, que o inconsciente freudiano é um sistema ordenado e organizado de acordo com as leis do deslocamento e da condensação; leis universais que operam sobre representações singulares. Universalidade das leis estruturais da sintaxe inconsciente, singularidade dos elementos sobre os quais elas incidem. Esta concepção do inconsciente presente em Freud conduziu Lacan a afirmar que "O inconsciente é estruturado como uma linguagem" (Lacan, 1964, p. 25), e que: "Com Freud faz irrupção uma nova perspectiva que revoluciona o estudo da subjetividade e que mostra justamente que o sujeito não se confunde com o indivíduo [...]. Freud nos diz - o sujeito não é sua inteligência, não está no mesmo eixo, é excêntrico. O sujeito como tal, funcionando como um sujeito, é diferente de um organismo que se adapta. O sujeito está descentrado com relação ao indivíduo" (Lacan, 1954-5, p. 16) 

Na primeira tópica Freud estabelece que o inconsciente é um domínio particular, funcionando à margem da consciência, composto essencialmente por representações de desejo indestrutíveis originadas na mais tenra infância. Estas representações encontram no recalque o operador que as promovem, instituem e possuem, no deslocamento e na condensação, as leis determinantes de seus sucessivos encadeamentos. Freud introduz, portanto, a noção de um sistema organizado e caracterizado por modos próprios de expressão, capaz de subsistir de forma autônoma em relação à consciência, fazendo desta mero efeito de superfície, tão fugaz quanto ilusória.

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