Introdução
A histeria vem sendo objeto de estudo desde os primórdios da medicina, na Grécia
Antiga com Hipócrates. O diagnóstico para a pessoa histérica era conhecido
como neurose histérica ou histeria de conversão. Hoje o diagnóstico é nomeado
como transtorno dissociativo ou conversivo.
As pessoas que manifestavam tais
sintomas e comportamentos, expostos no decorrer do presente artigo, foram alvo
de estudo não somente de médicos, mas de neurologistas, psiquiatras e até de
padres e bispos da época.
Foi por meio dos atendimentos às histéricas, que
Sigmund Freud, no final do século XIX, descobriu o inconsciente, elaborando um
método de tratamento, a Psicanálise. E desde a época de Freud que esse
tratamento vem sendo utilizado em pacientes com o referido diagnóstico.
Objetivo
CONCEPÇÕES HISTÓRICAS DA HISTERIA
O termo histeria é derivado da palavra grega hystera e significa matriz. De acordo
com Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, matriz é o "lugar onde algo se gera ou
cria; órgão das fêmeas dos mamíferos onde se gera o feto; útero" (1988, p. 422).
Hipócrates, médico renomado da Grécia Antiga (460-377 a.C) entendia a histeria
como sendo uma doença orgânica de origem uterina e, portanto, especificamente
feminina que afetava todo o corpo por sufocações da matriz. Ele supunha que a
histeria se desenvolvia pela privação de relações sexuais, dessecando o útero, que
perderia peso e se deslocaria pelo corpo em busca da umidade necessária. A
paciente teria sua respiração afetada, desenvolvendo convulsões se o útero subisse
até o hipocôndrio e estacionasse nesse órgão. Caso o útero prosseguisse sua subida
e atingisse o coração, a paciente emitiria sinais de ansiedade, opressão e vômitos.
Na Idade Média, "período histórico compreendido entre o começo do séc. V e
meados do séc. XV" (Ferreira, 1988, p. 348-349), a histeria deixou de ser abordada
pela medicina e, sob a influência das idéias religiosas mais especificamente as
concepções agostinianas, passou a ser objeto da Teologia. De acordo com as
concepções religiosas da época: "O homem, dotado de uma alma imortal, seria
sujeito a tentação pelo não cumprimento de seus deveres religiosos ou por não
conduzir a sua vida dentro do espírito cristão" (Ramadam, 1985, p. 55).
Elisabeth Roudinesco e Michel Plon afirmam que "as convulsões e as famosas
sufocações da matriz eram consideradas a expressão de um prazer sexual e, por
conseguinte, de um pecado" (1998, p. 338). A mulher era vista como sendo
possuída por um demônio, que a fazia agir involuntariamente, simulando doenças
A Igreja Católica Romana, por meio da Inquisição, investigava e reconhecia
os casos de bruxaria e mandava para a fogueira todos aqueles que se
comportavam histericamente. Durante mais de dois séculos, a caça às bruxas fez
muitas vítimas, mesmo a opinião médica se opondo contra essa concepção
demoníaca da possessão.
Ramadam considera que no período clássico (século XVII até parte do século
XVIII), a histeria era entendida como desenvolvida pelo efeito de "um calor interno
que propagaria através de todo o corpo uma efervescência, uma ebulição,
manifestando-se sem cessar em convulsões e espasmos" (1985, p. 56). Esse calor
seria representante da paixão, entusiasmo ou ardor amoroso. Sob essa perspectiva,
a histeria é associada a moças que procuram namorados, jovens viúvas ou
separadas.
Em meados do século XVIII com as colaborações de Franz Anton Mesmer, as
concepções demoníacas da histeria cederam às concepções científicas da mesma. A
histeria deixa de ser objeto de investigação da Igreja para ser uma doença dos
nervos, cabendo à medicina estudá-la e tratá-la.
Mesmer sustentou que as doenças nervosas tinham como origem um desequilíbrio
na destribuição de um fluído universal. Assim, bastava que o médico, transformado
em magnetizador, provocasse crises nos pacientes, em geral mulheres, para curá-los mediante o restabelecimento do equilíbrio do fluído. (Roudinesco & Plon, 1998,
p. 338)
Em 1843, na Inglaterra, o médico escocês James Braid substituiu a teoria do fluído
da histeria pela ideia de estimulação físico-químico-psicológica da histeria,
mostrando a inutilidade das intervenções do tipo magnética. Braid evidencia a
palavra hipnotismo nos seus estudos científicos.
Ainda na segunda metade do
século XVIII, com os estudos e pesquisas do neurologista francês Jean-Martin
Charcot, a histeria é tratada como uma neurose. A moderna noção de uma neurose
histérica subentendia uma causa traumática de ordem genital tornando-se uma
doença funcional, de origem hereditária, afetando tanto os homens quanto as
mulheres. Charcot utilizava a hipnose para demonstrar o fundamento de suas
hipóteses. Ele hipnotizava as loucas do hospital parisiense Salpêtrière, fabricando
sintomas histéricos para suprimi-los de imediato, comprovando o caráter neurótico
da doença.
Sigmund Freud, médico austríaco, entre 1888 a 1893, usufruindo dos achados de
Charcot sobre os aspectos traumáticos da histeria, afirma com sua Teoria da
Sedução que o trauma vivido pelo paciente histérico era de origem sexual,
sublinhando que a histeria era fruto de um abuso sexual realmente vivido pelo
sujeito na infância (sedução real).
Num segundo momento, apresentando a noção
de fantasia, renuncia à teoria da sedução, introduzindo as idéias de um trauma,
não de ordem física, mas sim de ordem psíquica. Na Comunicação Preliminar
dos Estudos sobre a histeria, Freud nos alerta para o fato de que a conexão entre o
acontecimento precipitante e o desenvolvimento da histeria freqüentemente é bem
clara. E completa que "em outros casos, a conexão causal não é tão simples.
Consiste somente no que poderia ser denominado uma relação simbólica entre a
causa precipitante e o fenômeno patológico - uma relação tal como as pessoas
saudáveis forma os sonhos" (Freud, 1895/1974, p. 45).
Roudinesco e Plon (1998, p. 340) escrevem que foi nos Estudos sobre a histeria,
que Freud propôs "os grandes conceitos de uma nova apreensão do inconsciente: o
recalcamento, a ab-reação, a defesa, a resistência e, por fim, a conversão". Citam
também que com a publicação, em 1900, de A Interpretação dos Sonhos, "o
conflito psíquico inconsciente é que foi reconhecido por Freud como a principal
causa da histeria" (Roudinesco & Plon, 1998, p. 340). E continuam enfatizando os
achados de Freud, que "ao lado da realidade material, existia uma realidade
psíquica do sujeito", que era de igual importância na história do seu
desenvolvimento. E afirmam que "em seguida, a teorização da sexualidade
infantil permitiu a Freud identificar o conflito nuclear da neurose histérica,
desenvolvendo os conceitos de Complexo de Édipo e Angústia de Castração"
(Roudinesco & Plon, 1998, p. 340).
As epidemias histéricas do fim do século XIX contribuíram de tal maneira para o
nascimento e difusão do freudismo que a própria noção de histeria desapareceu do
campo da clínica. A partir de 1914, ninguém mais ousou falar em histeria, a tal
ponto que a palavra foi identificada com a própria psicanálise.
O debate sobre histeria ressurge com a Primeira Guerra Mundial (1914-1918),
quando as discussões geravam em torno de uma nova forma de etiologia
traumática e da neurose de guerra. Por fim, depois da Segunda Guerra Mundial
(1939-1945), com o desenvolvimento dos trabalhos da medicina psicossomática de
inspiração psicanalítica, o termo histeria de conversão teve uma atenção especial.
A partir da década de 1960, com os debates norte-americanos e ingleses sobre
a Self Psychology e os borderlines, a ideia de personalidade múltipla, termo
utilizado para caracterizar a personalidade do indivíduo histérico, é alvo de estudos
de médicos, psiquiatras e psicanalistas.”
Segue o que BELINTANI (2003) constrói em outro momento do texto:
ESTUDOS SOBRE A HISTERIA (Freud, 1895)
“Freud, em 1895, publica seus Estudos sobre a histeria em que apresenta seus
achados e conclusões a respeito da histeria. Essa obra é composta pelo relato de
cinco casos clínicos, sendo que quatro deles foram atendidos pelo próprio Freud.
As
pacientes de Freud foram Frau Emmy von N., Miss Lucy R., Katharina e Fraülein
Elisabeth von R. O caso Anna O. é o primeiro caso clínico citado na obra. Ela foi
atendida por Josef Breuer, médico austríaco, que teve com Freud uma relação
bastante significativa, tanto afetiva quanto profissional.
Freud (1895/1974), nessa obra enfatiza a importância que suas pacientes tiveram
para a construção da teoria e técnica psicanalítica. As histéricas ensinaram a Freud
alguns dos principais rudimentos da Psicanálise.
Emmy von N., por exemplo, se
aborrecia quando Freud a questionava de onde veio isto ou aquilo e pedia para ele
que a deixasse falar o que ela tinha a dizer. Assim, ouvir para Freud, "tornou-se
mais do que uma arte, tornou-se um método, uma via privilegiada para o
conhecimento, à qual os pacientes lhe davam acesso" (Gay, 1989, p. 80).
A escuta
do terapeuta e a fala do paciente foram ganhando reconhecimento de tal forma que
a hipnose, como técnica terapêutica, foi perdendo seu valor, sua importância. Com
a ajuda de Emmy von N., reconhece a hipnose como sendo um procedimento inútil
e sem sentido. Ao abandonar gradualmente a hipnose, Freud adota um novo
modelo de tratamento: a técnica da associação livre.
Elisabeth von R. mostrou-lhe a resistência, quando se negava a responder o que
estava se passando pela sua mente nos momentos em que ele a interrogava. Ela
foi a paciente responsável pela descoberta da necessidade de se elaborar os
traumas recalcados com a ajuda da interpretação de Freud.
Os sintomas de Elisabeth von R. começaram entrar na conversa, também:
desencadeavam-se no momento em que ela falava da erupção deles, e amainavam
quando terminava de contar toda a sua história. Mas Freud também precisava
aprender a lição mais difícil de que a cura não era uma explosão melodramática de
percepções. Apenas o relato raramente bastava; os traumas tinham de
ser elaborados. O ingrediente final na recuperação de Elisabeth von R. foi a
interpretação dos indícios que Freud lhe apresentou e à qual ela resistiu
veementemente por algum tempo: ela amava seu cunhado, e havia reprimido
desejos perversos pela morte de sua irmã. O fato de aceitar esse desejo imoral pôs
termo a seus sofrimentos.
"Na primavera de 1894", contou Freud, "soube que ela ia
a um baile exclusivo, ao qual tratei de conseguir acesso, e não deixei escapar a
oportunidade de ver minha ex-paciente a voar numa dança ligeira" (Gay, 1989, p.
81-82).
Enfim, Freud deve muito, não somente a Elisabeth von R. e a Emmy von N., mas
também a Miss Lucy R. e a Katharina por elas terem contribuído tão ativamente na
elaboração da técnica e teoria psicanalítica: observação atenta, passividade alerta o
que Freud chamaria de atenção flutuante interpretação hábil, associação livre sem
o recurso da hipnose e elaboração.
Rothged, em referência aos Estudos sobre a
histeria, afirma que "Freud originou os desenvolvimentos técnicos, juntamente com
os conceitos teóricos primordiais de resistência, defesa e recalcamento
provenientes daqueles" (2001, p. 119). Em seu artigo E o verbo se fez carne, Maria
José Ceranto Garcia enfatiza que "o esclarecimento da etiologia da histeria se dá
paralelo ao desenvolvimento da psicanálise" (2000, p. 30).
O CASO ANNA O.
Josef Breuer atendeu por um ano e meio, com início em dezembro de 1880, Anna
O. (pseudônimo de Bertha Pappenheim). Caso este que seria reconhecido como o
"caso fundador da psicanálise" (Gay, 1989, p. 74).
Anna O., durante o seu tratamento, foi dando importantes contribuições para a
formação da teoria psicanalítica. Ela realizou sozinha grande parte do trabalho de
imaginação, ensinando Freud sobre a importância da escuta do analista.
Anna O. adoeceu quando tinha 21 anos. Apresentava uma tendência para ficar em
um devaneio sistemático, seu teatro particular como ela mesma definia. Tinha uma
vida bastante monótona, totalmente restrita à família e, como relembrou Freud
sobre o julgamento de Breuer a ela, "assombrosamente pouco desenvolvida em
termos sexuais" (Gay, 1989, p. 75). A doença fatal do pai é entendida como sendo
o acontecimento que precipitou sua histeria. Ela desenvolveu sintomas crescentes
de incapacidade, durante os meses que cuidou do pai: fraqueza por não ter apetite,
uma série de tosse nervosa e, após seis meses, foi atingida por um estrabismo
convergente. Também apresentava dores de cabeça, acessos de agitação,
perturbações da vista, paralisias parciais e perda de sensibilidade. Sua
sintomatologia foi se modificando com o tempo, chegando a representar lapsos
mentais, longos intervalos de sonolência, rápidas alterações de ânimo, alucinações
com cobras cegas, caveiras e esqueletos, crescentes dificuldades de fala.
Desenvolveu duas personalidades contrastantes, uma delas bastante rebelde. Ela
era visitada por Breuer todos os dias. Durante suas consultas ela contava muitas
histórias a ele, descobrindo juntos que seus sintomas se amenizavam devido essa
liberdade para falar. Procedimento este que ficou conhecido como a cura pela fala,
como função o processo de catarse. Anna O. teve seu momento de cura pela fala
quando, passando por um período de hidrofobia, ela se recorda que havia visto sua
dama de companhia inglesa de quem não gostava, deixar que um cãozinho bebesse
de um copo. Quando o nojo reprimido veio a tona, a hidrofobia desapareceu. Dessa
forma, todos os sintomas, as contrações paralisantes, as várias alucinações, etc.,
foram expulsos pela fala. Seus sintomas revelaram ser resíduos de sentimentos e
impulsos que ela se sentira obrigada a reprimir. Anna O. se tornou uma pioneira
ativista social, líder de causas feministas e de organizações de mulheres judias.
Mas Breuer omitiu a verdadeira causa que o fez interromper o tratamento com
Anna O. Ele terminou a exposição do caso, apresentando a paciente como liberta de
seus sintomas e afirmando que o término do tratamento ocorreu devido ao desejo
de Anna O. de encerrá-lo por motivos de mudança. Não é o que afirma Luiz Alfredo
Garcia-Rosa quando escreve que "o que motivou o término do tratamento foi um
fenômeno que, apesar de ser hoje em dia bastante conhecido, impossibilitou Breuer
de continuar a relação terapêutica com Anna O.: o fenômeno da transferência e da
contratransferência (1999, p. 39).
Para Breuer, o fato de ele falar de sua paciente com uma freqüência acima do
comum, não lhe parecia indício de nenhum envolvimento emocional. A mulher do
médico se tornou triste e ciumenta por escutá-lo e percebê-lo empolgado com sua
paciente. Breuer, porém, percebendo o que estava se passando, perturbou-se e
resolveu encerrar o tratamento. Anna O., sabendo de sua decisão, desenvolve uma
de suas piores crises. A paciente apresentava contrações abdominais de uma crise
de parto histérica. Breuer foi chamado para consultá-la e quando ela o viu disse
que seu filho estava chegando. Breuer atendeu Anna O. e a hipnotizou livrando-a
da crise. No outro dia, Breuer viaja com sua esposa de férias para Veneza.
Dessa forma, Freud conclui que a excitação emocional que se encontrava por trás
dos sintomas neuróticos era de natureza sexual e conflitiva. No decorrer de suas
pesquisas, Freud vai dando uma importância cada vez maior a sexualidade, tanto
para a compreensão da neurose como para a compreensão do indivíduo normal. Ele
escreve, em seu trabalho Um caso de histeria:
“Se é verdade que as causas das perturbações histéricas devem ser encontradas
nas intimidades da vida psicossexual dos pacientes, e que os sintomas histéricos
são a expressão de seus desejos mais secretos e reprimidos, então a elucidação
completa de um caso de histeria implica certamente a revelação dessas intimidades
e a divulgação desses segredos. (Freud, 1972, pp. 5-6)”
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